

Postado em 18/03/2022 - Atualizado em: 25/03/2022
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Como 2022 acena para 1922?
A Semana de Arte de Moderna de 1922 consistiu em um evento realizado no Theatro Municipal de São Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro.
A iniciativa de organizá-la pode ser atribuída ao feliz encontro entre os interesses de uma ascendente burguesia paulista e uma emergente vanguarda artística e literária brasileira. Para a elite enriquecida pelo boom da economia cafeeira e que prefigurava a formação de uma metrópole industrial e moderna, investir em uma nova safra de artistas e escritores que propunham justamente a modernização das práticas estéticas lhes parecia bastante oportuno. Contudo, na colheita, vieram frutos estranhos. Entre os solos de piano do Guimar Novaes, principal atração do evento, e a música erudita de Heitor Villa-Lobos, entre outros, os modernistas torpedeavam o público com suas dissonâncias: poemas insultando a burguesia (Mário de Andrade) ou comparando a estrutura rítmico-melódica da venerada poesia parnasiana ao coaxar de sapos (texto de Manuel Bandeira lido por Ronald de Carvalho); pinturas de orientação expressionista, com rostos amarelados e pinceladas visíveis ricocheteando para diferentes direções, como as de Anita Malfatti, e esculturas talhadas sob a perspectiva primitivista, como o célebre “Cristo de tranças” de Victor Brecheret, garantiam ao vernissage o seu quinhão na tarefa de inquietar o público. Ainda que, especula-se, as vaias e apupos que os espectadores, como contratorpedeiros, lançavam em direção aos artistas viessem, em parte, de uma claque organizada por Oswald de Andrade para garantir ao evento o furor necessário para que fosse, hoje, objeto de lembrança e celebração. Missão cumprida.
Mas o que aquela semana do mês de fevereiro de 1922 tem a dizer para esta semana do mês de fevereiro de 2022? Sob o ponto de vista do seu legado, o que chamamos de marco provocado pela Semana de 22 se deve ao papel do evento na arregimentação de um conjunto de práticas críticas, estéticas e políticas, tais como, entre outras, a assimilação seletiva das vanguardas europeias, a revisão crítica do passado histórico brasileiro, a desconstrução da noção de identidade nacional forjada pelo romantismo, a valorização da mestiçagem e do sincretismo cultural brasileiro.
As reverberações da semana, no curso dos anos 20, nos legaram obras indeléveis da nossa tradição cultural: a pintura de Tarsila do Amaral sedimentou traços e cores arquetípicos do Brasil, o que é evidenciado em sua ampla circulação nas mídias, como no recém-lançado filme Tarsilinha; Macunaíma, rapsódia de Mário de Andrade, se inscreveu, embora com muitos equívocos, como uma forte rubrica para se pensar a formação da identidade cultural brasileira; o conceito de antropofagia, forjado por Oswald de Andrade seis anos depois da Semana de 22, foi se sedimentando como uma poderosa teoria cultural, que tanto orientou práticas estéticas, como o Cinema Novo e o Tropicalismo, como, contemporaneamente, reflexões teóricas no campo das Ciências Humanas, como o conceito de perspectivismo ameríndio.
Para além da celebração e da avaliação do seu legado, 2022 devolve o olhar para 1922 sob uma perspectiva crítica. Hoje, essa efeméride é ocasião para se pensar a célebre semana sob a perspectiva de uma crítica cultural aguda, que se questiona, por exemplo, sobre o modo como paulistocentrismo do evento ofuscou outros importantes modernismos, como o mineiro e o pernambucano; ou sobre o papel desempenhado por mulheres e negros no evento. Nesse sentido, o show de lançamento do álbum AmarElo que o rapper Emicida realizou no Theatro Municipal de São Paulo, em novembro de 2019, soa emblemático, pois, ao abrir as suas portas para a diversidade musical, racial, social e de gênero, torna-o palco e testemunha de rupturas estéticas e culturais dos últimos 100 anos. É assim, como devolutiva, que 2022 acena para 1922.
Professor Alex Martoni, time de Literatura do Colégio Cave